sexta-feira, 26 de março de 2010

A arte de esculpir gente de plástico



Hoje tem repeteco de um texto que escrevi ano passado para o site Coletivo Cultural sobre o escultor Ron Mueck.

Por Eduardo Martins

Entediado com a solidão, Pigmaleão, um escultor talentoso da ilha de Chipre, decidiu que iria entalhar no marfim a mais perfeita forma feminina. De fato, a partir de um maciço bloco de pedra o artista fez uma ninfa espetacular. Deu-lhe o nome de Galatéia e, como um tolo, passou a adorá-la. Com o tempo, estava sendo devorado pela paixão. Só tinha olhos para a estátua. Amargurado por um amor impossível, Pigmaleão recorreu insistentemente à Vênus, a deusa do amor, para que sua bem amada vivesse. Até que, certo dia, ao beijá-la como de costume, sentiu a pedra morna e suave. Tomado de júbilo, percebeu que Galatéia estava viva.

Mal sabe Ovídio que seu personagem Pigmaleão, retirado do livro Metamorphoses, se tornaria uma espécie de guru informal para aquele que é considerado um dos maiores escultores contemporâneos da atualidade, um australiano que fazia marionetes para o programa infantil Sesame Street e começou a carreira em uma fábrica de manequins. Seu nome é Ron Mueck, tem 50 anos, e é quase impossível não se chocar com o preciosismo de seus trabalhos. Como Dead Dad, de 1997, uma peça em escala reduzida representando o corpo nu de seu falecido pai. A semelhança com um corpo real é simplesmente devastadora. Dá para perceber manchas na pele, rugas, cabelos, fios e pelos. Para alguns críticos a obra inaugurou uma nova era na escultura e possui tantos pormenores que forma um nó perceptivo: “É tão perfeito que não pode ser real”.

Mueck descende intelectualmente de um grupo de artistas plásticos surgidos no fim dos anos 1960, nos Estados Unidos, que igualmente buscaram o realismo em excesso como expressão. O movimento foi chamado Hiperrealismo, e apareceu no cenário artístico feito um tufão em contraponto ao minimalismo e à arte abstrata, que andavam em alta na época. Apesar do nome é uma espécie de filho bastardo do realismo do século XIX. Identificava-se mais com a Pop Art, principalmente no que diz respeito ao uso de elementos da cultura de massa – sem contar a postura de alienação social e a obsessão pelo virtuosismo técnico. A diferença entre ambas estava na abordagem. Enquanto Warhol, Lichtenstein e trupe glamourizavam o cotidiano e o culto às celebridades, o Hiperrealismo apostava na banalização da vida diária e na valorização dos personagens anônimos, vulgares e suburbanos.

O grande mérito do australiano é que nenhum outro escultor foi tão primoroso, nem mesmo os precursores hiperrealistas Duane Hanson e John DeAndrea. Mas muitas vezes o escultor consegue uma façanha ainda maior que reproduzir um corpo humano em detalhes. Ele é capaz de extrair uma variada gama de sentimentos complexos de quilos de fibra sintética, silicone, resina e poliéster. Seus personagens possuem uma fragilidade pungente, por vezes são mesquinhos, covardes, outros são atormentados, como que conscientes de suas limitações, perseguidos por medos, preocupações e questões existenciais.

Crouching Boy, de 2001, mede 5 metros de altura, e apesar de suas proporções monolíticas, parece vulnerável e inseguro como um garotinho perdido. Ao se aproximar, o espectador se encanta com a riqueza de detalhes: tecidos musculares esculpidos delicadamente, os dedos gigantescos e a intensidade dos olhos com suas grossas pestanas. A escultura possui uma presença enigmática, e é quase uma “esfinge” entre as obras de Ron Muck. Pregnant Woman, de 2002, tem 2 metros e meio, feita em fibra de vidro e silicone, é a própria imagem da maternidade e revela a capacidade do artista em retratar a temática da gravidez. Consegue ser forte sem omitir toda a vulnerabilidade e a intensidade emocional que a situação sugere. Mas não é só isso, a obra também causa um fascínio extra por sua extrema perfeição. Ela possui poros, folículos do cabelo e é possível notar até mesmo as sombras das veias logo abaixo da pele. Tem se a impressão de que a qualquer momento aquela mulher vai sair caminhando.

Sentado no chão rente à parede está Big Man, de 2000, um homem nu, idoso e robusto, com 2,41 metros de altura. Tem um semblante pesado, um ar ensimesmado, como se estivesse contrariado ou louco. Consegue ser o mais instigante retrato da solidão humana na arte contemporânea. In Bed, de 2005, mostra uma mulher de olhos tristes, mão levada à boca, com a cabeça recostada sobre um travesseiro e o corpo enrolado em um edredon. Por trás da cena banal, o artista procura dialogar com questões existenciais, onde através da resignação facial e prostração física, esconde-se melancolia e apatia.

Ron Mueck gosta de explorar a fronteira entre o real e o imaginário. Essa é a sua temática principal, e faz isso com propriedade criando figuras anatomicamente perfeitas, mas com dimensões fora de qualquer padrão de normalidade. Analisando os trabalhos do escultor, a associação com o conto de Ovídio é quase instantânea. Assim como o mito de Pigmaleão e Galatéa, as esculturas de Mueck parecem somente esperar a prece de algum coração apaixonado para ganharem vida.

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